Os meus olhos são guaritas, escotilhas, através das quais julgo ver o mundo. É uma forma de ver enviesada pelo julgamento e pela comparação. Na verdade, o retrato que faço do outro, é um retrato vazio, pois só vejo o que quero ver. Os sentidos são as testemunhas pagas para o certificar. Até se dar a troca dos retratos, o que vejo do outro na tela é um retrato distorcido, dividido. Vejo qualidades e defeitos, as minhas, os meus.
O outro, o meu irmão, não tem culpa do que ainda quero ver nele. Mas os meus olhos…
Não deixavam ver o que era
Queriam ver o que não estava…
O retrato é vazio porque este mundo não tem significado. Tem os significados que cada um lhe dá. Significados que se alteram a cada momento e segundo as fases da vida.
Perdoar não é o que os cristãos ou o mundo dizem, é reconhecer que o passado não existe, que nunca nada jamais se passou. Que todo o retrato é um espelho. Do agora que só ele existe.
No nosso afã de querer controlar a realidade coagulamos a onda quântica em partícula de realidade. O caminho, o cenário, os actores, os figurantes são escolhidos a dedo. Temos mesmo que ver tudo o que pensamos e sentimos, tudo o que ainda não dissemos e lavámos: o espelho é implacável e está sempre à espreita. A vítima atrai o verdugo. Donald Trump e Boris Johnson atraíram o seu mundo. O Grand Finale da visão do mundo anglo-saxónica.
Felizmente, apesar de já ninguém no mundo acreditar nisso, a verdade existe e representa-se pelo perdão. Num mundo onde tudo se tornou relativo (o que um dia levará à incompreensão geral e à realidade virtual) é verdade (ainda que oculta) aquilo que não tem oposto, aquilo que não muda, o que não tem forma nem aparência.
Vivemos obcecados pelas “molduras”, o ângulo correcto de apreciar a realidade. A maioria agora já nasceu no mapa e não no território. A busca de sentido tornou-se uma cruz num mundo sem referências e sem marcos,
uma sociedade controlada pelo mito do progresso, pelo ópio da “democracia” e pelas religiões, sempre avessas à verdade.
Percebo agora que usei certas cores por medo, que escrevi um guião à defesa. Julgo o outro porque tenho medo e me defendo. Assim, a inocência ausenta-se e o ataque é longamente premeditado.
O retrato que pintei do outro nunca existiu; tinha outros objectivos, a vingança, o ressentimento, o alimentar da caixinha das emoções. Quis remover algum furúnculo ou defeito do meu auto-retrato. Mas pintava sobre um espelho e desfazia de noite o que fazia de dia. O objectivo era responsabilizar o outro pela minha desgraça.
Identidade à custa dos outros: quanto mais vermelho e preto pintava, mais rosa e azul claro me via…
À falta de pessoas em quem me reconhecesse, toda a minha vida coleccionei retratos. É também o único género que, como artista, pinto. Não me assusta a tela em branco, saem-me fáceis. Retratos imaginários, projecções inacabadas, desejos desviados.
Como digo que “os outros são as partes de nós que vamos recuperando”, fiz recentemente a lista das 93 pessoas que conheci (fui amigo) nesta vista e dividi-as por emoções e por cores. Isso facilitou-me o trabalho de “perdão”. Vi os padrões que se repetiram, as linhas de clivagem ou confluência, as prioridades de cada época; dediquei mesmo algum trabalho a reconstituir os cenários onde certas fases da minha vida decorreram. Um “fresco” enorme que poderia ter pintado, uma gigantesca fantasmagoria emocional.
E depois, assim como -ao criar ou suscitar essas pessoas na minha vida- eu projectara essas emoções “para fora”, para o ecrã tridimensional, assim inspiro agora essas imagens, ligadas por emoções, afinidades e funções.
Vi as simpatias e as analogias, como certas pessoas iam substituindo outras e, mais estranhamente, como certas reapareciam passadas décadas, o que é compreensível na vida de um andarilho e ex-diplomata. Dei-me conta de que me liguei sobretudo a pessoas para quem a arte, a cultura e a espiritualidade são ou foram importantes.
“Inspiro” agora, várias vezes, essas pessoas (bem como os meus familiares, os mestres e os colegas) e trago-as ao meu coração. Revivo-as e liberto-as. Que para mim sejam virgens, pois que eu do passado faço tábua rasa…
Enquanto o espírito, que sei obrar em mim, vai limpando o interior do espelho, de onde um dia brotará um novo retrato, estou assim a começar a conseguir -talvez também pela meditação- apagar o meu olhar, a torná-lo mais vago, inocente e límpido. Estou a perdoar a distorção. Recuo e deixo que o meu irmão respire. Pela prática, vou chegando ao olhar neutro, equânime. Desculpo o João, o meu principal personagem…
Abro depois a vista para a cena global e constato novamente que os tiroteios e massacres que constantemente ocorrem nos EUA são obra do regime, que quer o caos para declarar o estado de sítio em nome da segurança. De resto a mesma vontade de criar o caos se avoluma entre Trump e a China e o Irão.
Mas eu já não comento isso na internet, pois tenho que ser coerente: assim como dantes havia um inner Bush, o Trump é só o pior de mim que ainda vou projectando na arena mundial. Que abandonei há 30 anos precisos.
Começo a dar-me conta de que as notícias internacionais de que, confesso, ainda sou dependente, são só o espelho amplificado do meu estado de espírito, do meu ego assustado e que ainda acredita que a melhor forma de ser respeitado e de se defender é o ataque, a qualquer potencial agressor que apareça.
Para terminar este texto e longo trabalho, só posso fazer uma “afirmação”, que é sentida:
“Eu perdoo o mundo. Deixo-o ir. Estou tranquilo. O vento não tem importância…”
“Nada tem importância, tudo é perfeito…”
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