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João Motta

Ciclo do Graal e Curso em Milagres 3 textos

Atualizado: 16 de mai. de 2019


1 O GRAAL E OS MILAGRES

1. O ciclo dos romances do Graal e o Curso em Milagres são duas eflorescências do Espírito Santo na História da humanidade. Oito séculos os separam, mas ambos revelam o mesmo rio subterrâneo que vem à tona do social em momentos chave onde o Ocidente se redefine.

Como esta temática conjunta ainda não foi até agora tratada e como as pessoas não conhecem muito do Graal nem do Curso, torna-se necessário uma introdução.

Introdução

O ciclo dos romances do Graal é escrito num período de 50 anos, de 1175 a 1225, sobretudo em França e na Alemanha, e depois em Portugal, em Espanha e na Inglaterra, no qual se propõe um novo paradigma civilizacional.

Aos bárbaros, rudes, violentos e arrogantes cavaleiros medievais é apresentado uma visão, inicialmente pagã e depois cristianizada, da sacralização da guerra e das armas, a qual, aliada ao culto nascente pelo amor cortês, por uma dama em geral inacessível, reordena as prioridades da élite da época.

Estes romances -que se seguem cronologicamente ás canções de Gesta, epopeias sobre os heróis do período de Carlos Magno, como o bravo cavaleiro Rolando- têm uma estrutura semelhante entre si:

Um rapaz que desconhece as suas origens nobres e o seu futuro glorioso, por um conjunto de circunstâncias e provas, entra no Jogo, como se diria agora, da busca do Graal, acabando ou não por chegar à vitória final.

O Graal é, ou algo imaterial, ou uma pedra verde que caíra da fronte de Lúcifer, ou é uma taça que dispensa a luz, o sustento e a graça àqueles que, por ele chamados, o conseguem ver e dele se alimentar. Para além dos convocados, só Parsifal consegue aceder, pela via das armas, à visão e conquista do Graal, de quem se torna guardião.

Um Curso em Milagres é um texto, ditado por Jesus Cristo a uma psicóloga judia de Nova Iorque, onde é publicado em 1976. O seu objectivo declarado é levar o Filho de Deus, a humanidade, a voltar em consciência ao Paraíso, donde na realidade nunca saiu.

Através de um longo e denso texto de base e de 365 lições diárias vai explorando os vários temas da sua mensagem, que são usados em termos de afirmações, de meditações ou de observação das nossas interacções sociais.

O seu ponto fulcral é o de que temos em nós o Espírito Santo, o qual, se estivermos abertos, vai corrigindo os nossos erros, transmutando as atitudes e operando certos milagres, ou seja, mudanças da nossa percepção, que vão resolvendo os nossos problemas.

Depois desta introdução sumária podemos agora desenvolver o tema das semelhanças e diferenças entre as duas propostas.


2. Para começar a ver as semelhanças, convém primeiro atender aos simbolismos que ambos usam:

Os romances do Graal falam-nos de busca, de aventuras, embates, provas e torneios, de castelos encantados ou que são a sede do Graal. Da transformação que ocorre quando se encontra a taça e aqueles que a servem. Falam da “terra gasta”, seca, abandonada e improdutiva devido ao rei do Graal estar ferido e não poder participar nos ritos. Apelam ao herói redentor e ao manejo correcto da sua espada em defesa dos fracos, das mulheres, crianças, órfãos, viúvas.

O Curso, em modo oriental ou gnóstico, diz-nos que o mundo não foi criado por Deus, mas pelo ego, e que é um sonho, uma ilusão da qual há que despertar. Isso é feito pelo perdão, não daquilo que nos fizeram no sonho, mas do que nunca ocorreu. É essa “expiação”, cancelamento, ou desfazer de todo o passado que nos leva de volta ao Pai, ao Paraíso, donde na realidade nunca saímos. Como diriam os cristãos, ao salvarmos a nossa alma, como somos unos com a humanidade inteira, fazemos a “salvação” do mundo. Pelo que “um salva todos”.


3 .

a)Ambos tratam da transmutação do buscador, o herói que, ao encontrar-se a si próprio, aos seus irmãos, e ao Graal que eles servem, reactiva ou reactualiza o Reino (do Céu, no Curso em Milagres e do Graal, nos romances). Algo que já foi, mas se perdeu. Uma Idade de Ouro, Paz e Concórdia.

b) Ambos tratam desse recuperar do Paraíso. A nível cósmico através da cura da brecha da separação original, a nível individual pela superação da auto-imagem que o buscador tinha de si próprio.

c)Assim como o Curso nos diz que nada preenche a separação e ausência do lar paterno, assim o ciclo do Graal nos diz da saudade constante dos que dele se afastam.

d) Ambos nos falam do colectivo em termos que se podem comparar:

No Graal há uma ideia de diluição do buscador no corpo místico dos servidores do Graal; esses cavaleiros do Graal servem a humanidade de quem são como que representantes, ou protótipos.

No Curso há a ideia de que “comunicação é comunhão”, pois sendo nós uno, ao comunicarmos (e é essa a função do corpo) estamos a comungar com nós próprios, numa espécie de devoção não dual ao Ser que verdadeiramente somos. O Curso diz que “os outros não existem”, pois eles são nós, são os nossos pensamentos em acção. Como alguém diria: “os outros são as partes de nós que vamos recuperando”.

Desta forma, tanto o Graal como o Curso falam, à sua maneira, do sanar da separação através da comunhão com todos aqueles que somos no eu mais vasto.


4. Tanto o Curso como o Graal nos falam da superação do ego separativo. Em termos actuais poder-se-ia falar de virilidade espiritual e do sagrado feminino como vias de sanação e superação do ego pela extensão do amor a toda a criação. Pode-se assim dizer que estaremos a refazer o Andrógino original, a que a Cabala chama o Adam Kadmon, esse estado de inteireza e completitude a que todos temos direito.

Nos tempos do Graal ainda não havia o conceito de ego, esse escravo que se tornou o senhor, mas falava-se em termos que se podem equiparar. Assim como o Curso fala da necessidade de evitar o “especialismo”, esse desejo de ser especial e superior aos outros e a separação, de que ele é filho; os romances falam-nos da necessidade do cavaleiro superar a arrogância, o orgulho e a desmesura, sendo também reprovadas a passividade e o abandono. A esta reprovação das duas direcções (inflação ou depressão) do ego no cavaleiro medieval podem-se ainda juntar as admoestações contra ele ser controlado só pelos seus desejos e aversões ou de ele se identificar demasiado com a sua personagem, o seu papel na escala social.


5. Ambas as propostas do Espírito Santo têm ainda mais em comum:

a) São alternativas ao Cristianismo tradicional, comparáveis antes ás visões gnósticas e aos neoplatónicos. Assim, a sua ênfase não é no pecado, na culpa, no medo e na distância. Ambas insistem em que não são necessários intermediários ou padres entre o humano e o divino.

b) Questionam o que é a realidade, as aparências, ambas relevando o papel do sonho, desperto ou adormecido e da abertura ao mistério e ao desconhecido.

c) Diluem a dicotomia interior/exterior, pondo ênfase no interior como o campo onde as decisões são tomadas e as atitudes forjadas, que depois vão criando os acontecimentos exteriores, as provas ou confirmações.

d) Questionam o livre-arbítrio do humano separado, um personagem que é moldado nos seus hábitos, preferências e aversões pela educação social e, sobretudo, que tem uma ideia de si próprio que é herdada, cultural. O tema da predestinação é central ao mistério do Graal e o Curso diz-nos que não temos nada a decidir, tudo já foi feito e só temos que nos lembrar ou deixar que o que somos se manifeste, pois a nossa vontade é a vontade de Deus

e) Falam, à sua maneira, de véus e bloqueios que impedem o buscador de chegar à verdade, sendo o mundo inimigo do amor. Os bloqueios são as crenças e os medos que nos distraem ou afastam do estar no agora, o não estar atento às oportunidades que momento a momento nos interpelam, o não acreditarmos que podemos vivenciar a nossa natureza divina.

f) Referem a necessidade da interação com os outros para o processo de despertar do sonho, como dizem o Curso e o Budismo, ou do “encantamento”, pessoal e colectivo, de que falam os romances. São os outros personagens do sonho que despertam e revelam em nós as nossas sombras e virtudes.

6. No que divergem as duas visões?

Claro que nos tempos do Graal o repertório de conceitos era muito mais limitado que o actual, a vida era mais simples, a forma como o humano se integrava no cosmos ordenado era mais directa e inquestionada. Certos costumes mais primitivos não tinham evoluído. A imaginação espiritual não era livre. Dogmas diferentes dos actuais imperavam e formatavam a consciência individual e colectiva.

Contudo, abstraindo da diferença de épocas, os dois temas que mais nos parecem sobressair como diferenças são:

Na época medieval, como anteriormente na Índia Védica, a noção de sacrifício, que, de resto, persiste ainda na nossa época, era essencial. Não “havendo” a ideia de sermos uno, quando um ganhava, outro perdia. Não sendo nós o Filho de Deus, a nada tínhamos direito pelo facto de o sermos -santos e inocentes como o Pai- pelo que, para receber algo tínhamos que pagar. Não se podia imaginar que “dar é receber”, como diz o Curso.

Tanto na época medieval como ainda agora persiste a ideia dualista de que saímos do Paraíso, quando o Curso nos diz que nunca de lá saímos. Meramente sonhamos o sonho do exílio…



II OS PUROS DE CORAÇÃO

Para quê falar do Graal? Para quê falar do Espírito Santo? Porque, mais cedo ou mais tarde, mesmo que sob nomes diferentes, são temas inevitáveis num percurso espiritual de vida. Porque são imagens ou símbolos da alma e do coração humanos. São activadores do nosso inconsciente, inspiradores do nosso pensamento.

O divino bate-nos à porta, interpela-nos, tanto a nível individual como colectivo e cada um vai fazendo as suas sínteses, as suas transacções entre o interior e o exterior. Cada um põe as suas perguntas, descobre suas respostas e acaba por se descobrir a si próprio. Como ser divino, perfeito, completo, uno.


Comecemos pois pelo Graal, aprofundando a temática do texto anterior.

Que significado tem hoje o Graal? Uma bela taça deixada na praia da consciência humana pela maré da História, política, literária e espiritual? Qual é o legado desses contos e romances que tanto marcaram um século e meio da Europa? Julius Evola responde que ele é “ a verdade daqueles que, sozinhos, podem legitimamente dizer-se vivos”. Helen Adolf diz que o Graal é “um oásis imaginário para os puros de coração”. Jean Varenne fala da sua “actualidade ardente” na nossa época poluída, na natureza e nos valores, à espera de uma resposta, de algo ou alguém que restaure uma ordem, um equilíbrio, um significado.

Têm sido inúmeros os autores que se têm debruçado sobre esta temática do Graal. Cada um com a sua atitude, a sua tese, os seus objectivos. E, com efeito, o Graal e os seus romances prestam-se a múltiplas interpretações. É “uma imagem sem imagem”, um conjunto de contradições e paradoxos que, contudo, parecem obedecer a uma lógica e dinâmica internas, de conjunto.

A razão por que o Graal continua a interpelar-nos é porque trata de questões individuais e colectivas, políticas e espirituais. Sendo um símbolo de unidade e de integridade é universal e eterno.


No fundo, como viram vários autores, como Wagner, o Graal é o símbolo do coração humano, esse nosso coração, ou alma, onde duas forças se digladiam: o amor e o medo, o Espírito Santo e o ego, dois sangues que correm mas não se misturam, um que une, outro que separa. Quem queremos ser? Diferentes, especiais, superiores ou entregarmos o livre arbítrio para que o Espírito Santo nos transmute? O grande sinal da inteligência é a humildade…Nada sabemos…


A razão por que o Espírito Santo (ES) apareceu no Graal da Idade Média e reapareceu na nossa época com o Curso em Milagres é porque ambos são momentos charneira em que o Ocidente se pode redefinir, momentos de viragem, oportunidades históricas.

Sendo a realidade simbólica, as coisas -temas, palavras, pessoas, objectos, lugares- que nos aparecem são constelados na nossa consciência para nos ajudarem a evoluir, a ter uma compreensão cada vez mais vasta e mais profunda da natureza da realidade.

Como diz Evola, “compreender e viver estes temas do Graal é penetrar no campo de realidades supra-históricas”. É por isso agora necessário analisarmos as razões porque os romances do Graal, basicamente num espaço de cinquenta anos, apareceram e desapareceram nos escritores do Ocidente europeu.


Muitas teses se perfilam. Helen Adolf, no seu Visio Pacis: holy city and holy grail diz-nos , com força de argumentos, que “o Graal é o fruto da derrota”. A queda de Jerusalém cristã em 1187,retomada por Saladino, teria mostrado que não era na cidade santa física, nem nos seus objectos e relíquias materiais, o Santo Sepulcro e a Cruz que se encontrava o divino, mas sim no nosso interior. Seria essa translação do Médio Oriente para o coração medieval que mostraria uma nova piedade, uma nova consciência espiritual e uma nova teologia aos cristãos. Nessa tese, a Igreja, que apoiara e instigara as Cruzadas, esse “episódio trágico e destrutivo”, executadas por rudes e bárbaros cavaleiros, cheios de intolerância e sem sabedoria, dera-se conta que havia que voltar às suas tradições anteriores, as de Santo Agostinho e de Cister e reformular a proposta a apresentar ao imaginário ocidental. O Graal seria assim o fruto do esgotamento e ultrapassagem de um modelo caduco, baseado na força para outro em que a contemplação emergia, onde o exterior era equilibrado pelo interior, onde o perdão substituía a vingança.

Assim com o Graal apareceu na Idade Média assim o Curso em Milagres apareceu em Nova Iorque em 1976. Ao longo da sua História a humanidade teve inúmeras oportunidades de escolher conscientemente a melhor bifurcação do seu caminho. A Grécia podia ter escolhido a Poesia e escolheu a Ciência. O mundo recomeçou em 1945 e voltou à separação. O que se passou com a revolução do Graal, em que a cavalaria espiritual dalguns nobres e bardos mais abertos ao influxo do divino acabou por sucumbir à hegemonia de Roma e do feudalismo monárquico centralizado, foi semelhante ao que ocorreu com o Flower Power, o Maio de 68: por um instante a sociedade burguesa, o capitalismo, estacou, assustou-se, mas facilmente retomou o controlo da situação, pois a esquerda- os sindicatos e os partidos socialistas do Ocidente- rapidamente se manifestaram a favor do status quo e da estabilidade, pelo que a juventude foi abandonada, continuando até hoje a servir de carne de canhão.


Agora na nossa época, e foi também nesse período dos anos 70 que surgiu a New Age, a consciência global encontra-se perante o mesmo dilema: continuar como uma avestruz que não se quer dar conta da catástrofe ecológica e política já inegável ou ter um estremeção de consciência? O que as histórias do Graal nos ensinam e nisso estarão de acordo com o Curso em Milagres é que não vale a pena tentar intervir no colectivo: a salvação é individual, uma mudança ou transmutação da percepção, da atitude, da personalidade de quem está disposto e ela salvará o mundo como consequência. Não podemos estar á espera da boleia do colectivo.


A nossa tese de que o Graal e o Curso em Milagres são uma eflorescência do rio subterrâneo do Espírito Santo, que testa a receptividade da consciência colectiva à sua mensagem transfiguradora, parece confirmada por vários estudiosos do Graal, que, aqui e ali, nos textos originais, destacam a aparição do Espírito Santo.

Ou é o castelo do Graal que diariamente recebe o influxo do ES ou é José de Arimateia que na prisão recebe as chamas do ES ou é o facto da bandeira do castelo do Graal ser a pomba ou a cruz vermelha em fundo branco, que depois foi dos Templários e da Ordem de Cristo, havendo mesmo quem diga que “o Graal é uma Igreja do Espírito Santo”. O curioso é que, nessa época surge também a visão do Abade Joaquim de Fiora, que nos fala da idade vindoura do ES, em que “todos serão monges”, não no sentido da castidade, da obediência e da pobreza, mas sim de que todos estarão dedicados a aprender e ensinar.


O movimento do Graal é do ES porque não é de Roma, que, nessa altura, substitui o Espírito Santo pelo culto da Virgem Maria. E, com efeito, a Igreja foi astuta perante um movimento que a punha frontalmente em causa. No Graal não há igrejas nem capelas, há castelos e palácios. Não há sacerdotes que oficiam, mas sim donzelas que levam a procissão do Graal. Existe uma linhagem de guardiões do Graal, que em geral decaída, contrasta pela sua nobreza de coração, (extensiva a toda essa comunidade), com a intolerância e dissolução do clero cristão da época. Também, o objectivo do Graal é o encontro com o divino em si próprio, uma interiorização mística que a Igreja, em geral exotérica, virada para a fé, para a devoção e para os ritos sempre temeu. Outro facto surpreendente é que não eram só cristãos que podiam combater pelo Graal, mas também pagãos. Além disso, o Graal era supranacional, uma ameaça para os reinos cristãos nascentes e supra-racional, para além das teologias dos doutores da Igreja, que nunca são mencionadas.


O Graal era pois, claramente, uma ameaça para os poderes estabelecidos, uma alternativa política e espiritual que não podia ser tolerada. Assim, a Igreja, primeiro abafou-o e desviou-o através da criação, pela Ordem de Cister de um novo personagem, Galaad, o cavaleiro impoluto e, pouco depois, lançou-se na luta contra os heréticos: os Cátaros e posteriormente os Templários. Ainda as cinzas e brasas do Graal brilhavam rubras já as fogueiras da Inquisição começavam a arder…

Assim, como já alguém disse, o Graal pode ser visto como parte de uma tentativa mais vasta dos cavaleiros do Sul de França, ibéricos, democráticos, federalistas e municipalistas de se libertarem da teocracia de Roma e do jugo dos bárbaros do Norte, os Francos. Falhou, mas a sua luz chegou até nós.

Mas, a ameaça maior, tanto do Graal como do Curso, em relação aos poderes estabelecidos que controlam o imaginário ocidental através de um storytelling cada vez mais refinado é que a figura, o exemplo e o ensinamento do Cristo está em transparência no Graal e declarado no Curso. Num dos últimos livros do Graal, “O Grande São Graal”, já com influência da Igreja, o livro do Graal teria sido escrito pelo próprio Cristo e transmitido ao autor por uma visão. Abrir o escrínio que contem o Graal significa entrar em contacto directo com o Cristo.


Noutros, como em Albrecht, a ideia é mesmo da cristificação. Jogando com a semelhança de Cristo e cristal, ele afirma: “Cristãos, cristalizai-vos em Cristo!”.

Falar dos temas do Graal e do Curso é um campo de colheita inesgotável, pelo que vamos só sintetizar certas subtemáticas:

Nas histórias do Graal há que ver o nível histórico e o supra-histórico. Há que atender à História interior, das ideias, dos sentimentos, das aspirações, e à História secreta, que não é reconhecida pelos historiadores materialistas. Há que ver o plano metafísico, velado pelas aventuras reais… Também, uma parte das histórias passa-se ao mesmo tempo num passado que pode ser longínquo, em que um erro foi cometido -e esse pano de fundo é sempre uma alegoria da Queda do homem e da necessidade de redenção- mas aponta-se também para um futuro escatológico que se deseja, um fim do tempo onde tudo terá feito sentido. Pelo que as histórias do Graal reactualizam o erro original, a falta de atenção e presença a uma oportunidade, e conduzem ao apagar e perdão dessa memória, o que permite a restauração do estado original de inocência.


Sobretudo, tem que se reconhecer e sentir que a atmosfera, a estrutura e o objectivo do ciclo do Graal visam a criação ou re-emergência de um mito através de um jogo de arquétipos, e que, assim, se impõe uma leitura simbólica que ilumine o efémero e as suas sombras e possa deixar refulgir a mensagem, sempre actual, da transmutação da personalidade integrada e o relembrar ou redescobrir do nosso carácter divino. Se um mito é uma história poética que dá respostas às interrogações fundamentais de uma cultura, que dá sentido a uma forma de viver a vida, então o mito do Graal é o da origem e destino da alma humana e os arquétipos, ideias força ou personagens que estão em jogo são vários, como a busca e o encontro, a verdade, o herói, a luz e a unidade.

Tanto o Graal como o Curso, de formas diferentes, nos apresentam o homem como o Filho Pródigo, que volta à casa do Pai/Mãe. O Curso é claro e revolucionário: todos somos colectivamente o Cristo. Nunca deixámos o Paraíso.


É interessante, neste contexto, lembrar uma das acusações feitas contra os Templários: que eles recusavam a crucifixão, o crucifixo, dizendo antes que “se devia acreditar no Senhor que está no Paraíso”. O que confere com o que diz Jesus Cristo no Curso: a crucifixão não tinha importância por si, era só para nos mostrar a possibilidade gloriosa da ressurreição, de podermos reanimar os átomos do nosso corpo.

Os romances do Graal dão-nos um exemplo do buscador que descobre. Quais são as provas envolvidas? Elas não são só de força e perícia físicas, mas sobretudo psicológicas e espirituais. O Graal reprova não só o orgulho, a desmesura, mas o seu oposto, o abandono. Assim, o cavaleiro que, em relação às mulheres, perdia a sua função e dignidade, a sua virilidade sagrada, ao deixar-se possuir pela ânsia, pelos impulsos bestiais, pelo abandono da presença, sofria como que uma castração espiritual. Esta atitude de reprovação não era vista como algo sexofobo ou misógino, mas como respeito (que nessa época ainda não existia) pela mulher, que se torna então luz transfiguradora e vivificante, inspiradora e instigadora de feitos poéticos ou heróicos. Essa prova era também vista como uma necessidade que o cavaleiro tinha de mostrar autocontrolo e equilíbrio como preparação da sua consciência para provas mais transcendentes, para poder aceder ao amor supra-humano, o ágape, o amor incondicional. O amor do Graal, que leva aquele que o conhece ao Paraíso.


Assim, as qualidades do cavaleiro predestinado vão-no levando da cavalaria terrestre à cavalaria espiritual. Ele deverá tornar-se o herói das duas espadas, a temporal e a espiritual, deverá tornar-se o Senhor das Duas Coroas, a coroa régia de alguém que -ao tornar-se soberano de si próprio- assume também a tiara espiritual de pontífice. Como se diz nos antigos textos nórdicos e no Mabinogion, “Que aquele que é chefe nos sirva de ponte”.

O livro de Evola, O Mistério do Graal é como que uma tese sobre o sentido transcendente da Espada. Este seria um tema que nos poderia levar muito longe. Aqui referiremos só alguns dados ou ideias: uma imagem central destes contos é a espada perdida de Artur, que, de tempos a tempos, emerge das águas de um lago e que, cintilando, espera aquele que virá empunhá-la; é a espada que, em todos os contos do Graal, Arturianos ou mesmo escritos na nossa época, estando cravada numa pedra ou numa árvore, à guarda de um rei idoso ou de uma figura mítica no alto de uma montanha com nevoeiro, espera pelo predestinado, que, com ela, quebrará os encantos e sortilégios que adormecem o rei do Graal num torpor doloroso que torna desolado o Reino. Ele torna-se Rei do Graal e a espada é o sinal indiscutível da sua realeza, do seu mandato celeste. A espada reconhece-o, mesmo em mãos de outros voa para ele. Se ela se partiu -e isso ocorre muitas vezes nos romances e sagas- o herói sabe reconstituí-la. No caso do Perlesvaus, ele partira-a de propósito duas vezes contra uma vara de ferro e conseguira reforjá-la, mas, à terceira, não o conseguiu, o que levou o rei ancião a dizer que ele só conseguirá fazê-lo “quando ela estiver inteiramente na sua posse”, espiritual, entenda-se. Outros só conseguem desembainhar a espada a meio ou ela não lhes obedece.


A temática da espada é muito variada: mágica, perdida, partida, meio desembainhada, escondida, roubada, forjada por quem e para quê, guardada por quem e em que contexto, com quais inscrições (como “Que São Miguel me desembainhe!”), com quais pedrarias ou relíquias no punho, a quem pertenceu anteriormente. De todas as provas, o desembainhar da espada inacessível e o reforjar da espada partida são as duas mais importantes. Em certos romances do Graal, como no “Grande São Graal”, a espada é tão estimada como o próprio Graal. Quando ela é transmitida (ainda agora em certas Côrtes do Oriente) ela transmite uma função. Quando ela está presente no trono é como se o soberano ali estivesse presente em pessoa. A sua transmissão é feita com “secretes paroles”, pois ela é um instrumento, como o ceptro, de energia criadora, de manutenção e destruição. Tal como Itara, o falo simbólico de Shiva, ela “atravessa a corrente do tempo e do devir”.

Claro que, na nossa época desprovida de referências simbólicas, invadida pelos signos e sinais da publicidade e da política, uma espada e uma taça dificilmente evocam o poder numinoso, transformador e unificador, que tinham na mente medieval, sempre predisposta ao maravilhoso e ao milagre. Porque as pessoas deixaram de acreditar, esse mundo eclipsou-se, como deixamos de acreditar em anjos e seres da natureza eles entraram em recesso, mantem-se invisíveis… Mas nada se perde…


Um tema que nos parece de grande actualidade é o do encantamento, uma palavra caída em desuso. Toda a história do Graal é a do quebrar um encantamento maléfico, uma maldição que -devida a um erro cometido pelo governante, pelo rei que ainda era sagrado- tinha submergido em letargia tanto o rei como o reino. Com o rei impotente a terra deixara de ser fértil, secara, estava abandonada. O herói, ao empunhar a espada ou a lança, num acto de virilidade espiritual e mágica cura o passado, o rei enfermo e restaura a ordem tradicional, que tinha vacilado. Uma nova dinastia predestinada aparece. O trono há muito vago é reocupado. Em termos poéticos podemos dizer : A corte que fora dissolvida, em Camelot ou no Palácio da Espada, no Castelo da Taça ou da Távola Redonda é finalmente desperta do seu torpor. Os cavaleiros e as damas que acordam desse sonho multisecular sacodem a poeira, abrem os olhos uns para os outros e redescobrem o Graal, desta vez firmemente ancorado nos seu coração. Somos quem sempre fomos!

É este entrosar do individual -em que o cavaleiro, ao ver o Graal, se descobre a si próprio- com o colectivo, a comunidade que guarda e serve o Graal, aqueles que puseram a sua espada ao serviço da legitimidade trans-histórica da tradição universal e primordial e que, no Curso, em Milagres somos todos nós, os humanos, é este entrosar que permite o despertar colectivo: o libertar da humanidade do actual pesadelo materialista do dinheiro.

Cada um de nós, como um fractal que é do todo, deste holograma ou fantasmagoria a que chamam o mundo, pode despertar do sonho, da ilusão dos sentidos, da matriz de programação colectiva e o seu despertar é como uma luzinha que ilumina a escuridão. Cada um que desperte pode despoletar uma reacção em cadeia das sinapses mais eléctricas e entusiásticas da consciência colectiva, uma explosão de luz no cérebro planetário, o activar consciente de todo o nosso potencial energético.

Como a maldição é só a externalização dos nossos sentimentos de impotência, frustração e culpa, que projectamos no ecran tridimensional e nos faz espelho e eco, quando recuperarmos a nossa inocência, a nossa impecabilidade é nosso o Paraíso, salvamos o mundo... Então, “a espada de Artur será sempre nossa” e o Graal dos puros habitará no coração de cada um. Somos aquele que buscamos e nosso é o Amor com que fomos feitos.



III O CORAÇÃO QUE DESPERTA


Para terminar este ciclo de três artigos sobre a via proposta pelos romances do Graal e a sua relação com o Curso em Milagres retomaremos e desenvolveremos alguns temas anteriores, de forma a podermos ter uma ideia de conjunto e chegarmos ainda a mais conclusões.


Sublinharemos primeiro alguns pontos essenciais:

1. Trevizent, o eremita do romance de Wolfram von Eschenbach, diz ao jovem Parsifal: “ Esses cavaleiros do templo buscam longe aventuras; não importa o resultado do combate, glória ou humilhação, aceitam-no com coração sereno, como expiação dos pecados”. Também de Parsifal se pode dizer que não é um herói vazio, só que o seu ser interior ainda não despertou. O seu nome que uns dizem significar “puro louco” aponta para o facto de o mérito de um louco consistir em não ter nenhum compromisso com o mundo exterior. Como diz o romance ele não é “Ni tenu ni retenu”. Seres como ele são posse de Deus ou do Graal..


2. Quais são as virtudes do Graal? A virtude iluminante, essa luz sobrenatural que ele emana; dá alimento e vida, o alimento espiritual e vital que cada um, individualmente, precisa e deseja; cura a dor, o sofrimento e a enfermidade; transmite a força da vitória e domínio, sobretudo à espada do Graal e confere a alegria eterna. Tem também a virtude terrível, destruidora, de cegar e fulminar. No “lugar perigoso”, à mesa dos eleitos, abre-se um abismo, perante o qual o herói predestinado, como Parsifal tem que ficar impassível.

Quando o Budismo nos fala da virtude da equanimidade é também dessa impassibilidade perante o material, o filme que se desenrola diante de nós, que nos fala o Graal ao referir que nessa difícil prova deve o cavaleiro ficar “sem reagir nem a provocações nem a desafios para combate, nem a gritos de socorro nem a se entregar a empresas cavaleirescas de justa vingança”. Como diz a dama Saelda ao cavaleiro Galvão, se ele não passasse esta prova, “a corte seria dissolvida”. Teria sido “uma noite de provas desastrosas” em que poderia ter recebido “o golpe fatal”.


3. Voltamos assim às provas do amor e do sexo, que não são moralistas, antes apontam para o facto de o herói dever ser viril mas não limitado, pois deve abrir-se ao transcendente. Só assim o fogo, o caracter ígneo do masculino, se torna luz, só assim o fogo se liberta noutro plano supra-sensível, onde o herói reafirma a sua virilidade transcendente. Essa afirmação é feita sob o influxo transformador da mulher, que o que o inspira á superação.

De acordo com as tradições secretas, o homem possui o princípio de uma força eminentemente viril, a qual, quando liberta da materialidade, se manifesta como poder mágico e de comando. É essa prova que permite a manifestação desse poder. É nesse momento que nasce o amor cortês e a nobreza de coração.

Só depois, segundo Evola, na fase intermédia e última do ciclo do dos romances do Graal, é que a espiritualidade se torna feminina e lunar, com a aparição do ideal ascético e eremítico de contemplação e devoção, o que é concomitante com a “materialização do viril”, em que o homem abandona a busca e se dedica à sobrevivência. É assim que o cavaleiro se torna soldado, ao serviço de uma nação terrestre.


4. Não podemos deixar de sublinhar um aspecto que a poucos hoje fará sentido, mas do qual depende talvez a sobrevivência da nossa civilização de desmesura prometaica.

O Graal representou no seu tempo o aflorar de um mal-estar metafísico, pois cada um adivinhava que a Busca poderia resolver os problemas da Idade Média, as contradições desse tempo, mas, afinal, o Graal foi testemunha de uma realidade metafísica que os cavaleiros medievais não souberam resolver. O Império tradicional não se pode realizar. O invocar da figura de Artur – um federador, que os reis ingleses da dinastia Plantageneta promoveram para rivalizar com a imagem continental de Carlos Magno e de Rolando- não foi suficiente para o restaurar do império universal. O curioso é que, nessa exacta altura, Gengis-Khan, “O Senhor dos Tronos e das Coroas”, estabeleceu, ainda que de forma efémera, essa soberania universal, o maior império jamais forjado, em metade da Ásia e na Europa de Leste.


É por esse mal-estar metafísico que Evola refere que “a supra História faz pressão sobre a História para a resolução da crise espiritual e temporal de toda uma época”. A superação do Cristianismo intolerante e monolítico e a necessária federação da Europa eram assim o “problema mudo” da Idade Média. O espírito do tempo invocava a aparição do herói das duas espadas para que ele pusesse a pergunta que cura e restaurasse uma ordem mais justa. Talvez se esperasse o herói do Graal a fim de que o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico retomasse a sua dignidade universal.

O projecto falhou, pois o Graal é levado para o Oriente e permanece escondido por o seu mistério ter sido rejeitado ou incompreendido. A História distanciou-se de novo da Supra-História. Mas a questão que se levantou continua: enquanto as duas espadas não forem unidas numa só o mundo permanecerá dividido, desolado e desorientado.

A boa nova, contudo, é o reaparecer actual do Espírito Santo, em mestres como Agostinho da Silva ou no Curso em Milagres, que reapresentam e modernizam a proposta do Graal: não separar o quotidiano do sagrado, ver a vida como um campo de aprendizagem e evolução, ver fraterna a humanidade.


5. Resta-nos referir o legado político-espiritual dos romances do Graal. O primeiro são os Templários, esses cavaleiros do Graal, cujo grito de batalha era “Viva Deus, Santo Amor”, contra quem a Igreja e a monarquia franca desenvolveram uma verdadeira “cruzada contra o Graal”. O segundo legado foram os Cátaros e os Fieis de Amor de Dante, temas sobre os quais não alargaremos. O terceiro foi o mundo hermético e alquímico. O quarto foram os Rosa Cruzes. Por fim, poder-se-ia dizer que a Maçonaria especulativa também recebeu ou aspirou a esse ideal. Mas Evola é muito negativo sobre ela, acusando-a de ter preparado e ajudado a criar a sociedade capitalista, materialista e quantitativa do Terceiro Estado, que agora nos rege e de ter destruído a visão do mundo do Segundo Estado, a nobreza tradicional, com os seus valores de serviço e a sua inserção numa ordem transcendente.


6. Também em termos de literatura é enorme a dívida do Ocidente em relação aos romances do Graal. Foram eles que estabeleceram o género, a estrutura e a dinâmica que ainda hoje imperam: uma trama romanesca á volta de um enigma.


7. Para finalizar este longo relacionamento do Graal com o Curso em Milagres, em que, por vezes, os romances medievos nos aparecem como uns prenunciadores da chegada actual do Curso, tocaremos algumas essências, à guisa de conclusões:

O Graal é Luz, o Curso diz-nos que somos Luz, e que essa Luz é Força, o que nos dá a impecabilidade. O Graal insiste na pergunta que deve ser feita para desfazer o encantamento; o Curso diz-nos para perguntarmos a Deus quem somos, pois temos direito à nossa herança, a saber que somos seus Filhos, um só Cristo colectivo. No Graal fala-se do herói, Parsifal, que se extasia amorosamente na Natureza ao ouvir e compreender o canto das aves, a linguagem espiritual que é também a dos anjos. O Curso insiste que nunca deixámos de ser inocentes e que ainda somos tal como o Pai nos criou, puro Amor, sendo assim que devemos ver os outros, em vez de os julgar pelos seus comportamentos, que não são a sua essência. Ver a face do Cristo em cada um.

Que o Espírito Santo nos guie pois e que um dia vejamos o Graal, pois já o vimos no Paraíso… Somos o Uno que nunca se partiu nem separou. Somos o Amor que tudo é!

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