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João Motta

Jardins Mágicos - Um traço de inocência



Jardins Mágicos - João Motta
Jardins Mágicos - Um traço de inocência. João Motta

Os JM vêm de um tempo onde todas as coisas falavam, onde todas estavam ligadas entre si. Eles nascem da correspondência entre os objectos. Os objectos são imagens e energias que surgem para expressar um sonho, um desejo de se completarem. Através da energia projectada por mim sobre eles há um apaziguamento das tensões internas, há um reconhecimento das pulsões. Há uma harmonização das divergências. Não só internas, mas também sociais, senão cósmicas. Pois, quando a energia invocada é ritualizada e ancorada num JM, ele irradia.

Ao recriar mundos, exerço o direito natural de todo o ser humano a dar, no exterior, ordem ao seu caos interior; assim ordenando também, por simpatia, em menor ou maior grau, o mundo exterior.

É verdade que o que mais gosto é brincar, que posso passar horas a brincar com todo o tipo de objectos e pequenas figuras. Estou sempre a ver sentidos, situações e histórias. Os objectos prestam-se mais, são mais plásticos do que as pessoas para representarem papéis, para revelarem energias, individuais ou arquetípicas, para desencadearem situações.

Sempre disse que os JM são terapêuticos porque nos revelam -a mim e aos outros que fizeram a experiência, como o JP e a LSO- a nós próprios. Cada JM é uma civilização a menos que tenho que estudar, um livro a menos que tenho que ler, um museu que resumi.

Os JM ocorrem fora do tempo. São flores do fluir do momento divino ou infantil, fluem da graça da ausência de intenção. Eles fazem-se por si, vão pedindo os seus personagens, cenários ou cores, têm uma perfeição intrínseca, em que o construir será um lembrar. O lembrar do tempo em que as coisas eram unas. Em que tudo fluía sem esforço, sem necessidade de pensar, de manipular, de querer mudar ou chegar a algum lado.

Tive a sorte de nascer num mundo extremamente rico: o reino de São Marçal. Rico de objectos, de pessoas e de natureza. Eram sessenta divisões, de tectos muito altos, recheadas de objectos e moveis, muitos deles orientais, por vezes avassaladores para uma criança. Eramos nove irmãos e sete empregados, mais os muitos amigos dos irmãos e dos pais. Era para mim sobretudo, o jardim exótico de 1900, com as suas flores e animais, as suas construções, estátuas e fontes, um mundo por onde eu corria atrás das borboletas. Sobretudo a sua estufa onde eu, pequenito, me isolava, longe de tudo e todos, perto de uma torneira enferrujada que, muito lentamente, gotejava sobre o musgo e onde pequenos insectos vinham sorver a humidade. Eram as muitas jaulas abandonadas, depois parte das capoeiras com galinhas e perus, e coelhos no Verão. Como pano de fundo por dois lados, os prédios vizinhos.

Toda essa amplidão, riqueza e diversidade formaram a minha imaginação. Havia sempre um quarto abandonado e poeirento onde podia sentir-me criador, livre e em paz. Onde os objectos encenados se tornavam a minha moldura ou teatro. Onde espaço se moldava á exacta medida da minha energia.…

Há anos que digo que os JM não são estáticos, pois é a sua energia que os torna mágicos. A energia dos objectos, que desde criança sinto, poderá ser intuída só como latente nesta realidade visível, mas a minha verdade é que ela, como JM, late, vibra e se expande noutras dimensões. Poder-se-ia mesmo dizer que os JM são criadores de universos necessários, vias possíveis de evolução para a humanidade…

Eles têm a sua vida própria, que não está fechada dentro de caixas de vidro ou acrílico. A vida flui por muitas maneiras. A arte meramente facilita o seu fluxo, permitindo a comunicação entre as dimensões. Como dizia Hildegarde von Bingen, “a arte é um eco distante do Paraíso”.

Os JM fazem parte de um jogo onde o unidimensional (a única verdadeira identidade) se quis sentir no bidimensional dos sentimentos, emoções, ideias e pensamentos, que acabaram por se plasmar no tridimensional. Os humanos consideram o domínio do tridimensional a sua coroa de glória, isto em relação aos animais, que vivem fora do tempo e colados ao espaço, mas tudo é um contínuo, nada é superior ou inferior, certo ou errado.

Os JM são fragmentos do Uno, pedaços partidos de um espelho ou puzzle que o Senhor do Tempo dispersou, na sua ânsia de multiplicar as dimensões e de inflacionar as emoções. Ao fazer um JM, ajo como um “hacker do tempo”, pois refaço a História humana e crio novas linhas de tempo, alternativas ao conformismo e á falta de imaginação que caracterizam a sociedade actual. Sobretudo, embarco os humanos numa viagem rumo ao centro, de onde jorramos realidade. Onde o espaço e o tempo são só as nossas ferramentas para um sonho feliz...

Tanto para a criança como para o adulto, fazer um JM é brincar. Mas, se a atitude é humilde, esse é um brincar religado à fonte, á onda inicial do encantamento. Cada peça de um JM é uma gota coagulada do infinito. Ao serem todas postas em contacto, refazemos o uno. Na verdade, o uno nunca se separou e os JM são só as estações da nossa progressiva lembrança daquele estado edénico onde não havia formas nem imagens…

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