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João Motta

Jardins Mágicos

Atualizado: 29 de mai. de 2019


“Procuro pôr a lógica do visível ao serviço do invisível” — Odilon Redon
“Sou Deus num corpo... quero ter uma personalidade para cumprir a minha tarefa, a minha tarefa é a tarefa de Deus” — Nijinsky
“Este mundo não é nem real nem irreal” — Buda

Considero os Jardins Mágicos como sinais precursores de um novo mundo e formas intermediárias entre o passado e o futuro dos homens.

Em termos puramente artísticos os jardins podem ser enquadrados sob vários ângulos. Assim, o carácter forte, concentrado e antigo de alguns dos seus objectos sugere um neo-simbolismo, enquanto o facto de vários deles serem, pelo contrário, "objets trouvés" ou peças tiradas do seu contexto, desviadas da sua função e "recicladas", aponta para um tipo de surrealismo. Estas são sem dúvida duas das minhas maiores influências culturais. Também é inegável que a ironia e o lúdico desta última corrente estão em geral neles presentes e que a sensação de transcendente que pre-rafaelitas e surrealistas quiseram dar, também é aqui perceptível. Em ambas se poderia ainda, por acréscimo, discernir um certo conceptualismo pois há sempre uma ideia clara por detrás que visa provocar uma reacção do espectador.

Todas estas três correntes artísticas explicam o facto de nestas obras eu utilizar peças de épocas, origens, escalas, materiais e valores financeiros muito diversos, fundidas num só "quadro" que é uma ideia ou símbolo. E talvez só a fusão, porventura não habitual, entre essas três correntes artísticas permite compreender que uma mesma obra possa ao mesmo tempo ser sentida como lúdica e como mística.

Se a sua "classificação" é pois difícil, havendo também quem coerentemente os aparente com a "arte bruta", é mais difícil ainda explicar o conceito que os anima ou seja definir a sua função e aquilo em que consistem. Até porque não são dissociáveis de outras formas em que a cultura se manifesta através do artista, como a poesia ou a dansa-mimo Butoh. "Ars Una".

A mim interessa-me mais a mensagem (o conteúdo) e a imagem (forte) do que o meio. Isto é, o tipo de material utilizado e a forma de expressão ou a corrente artística. Esta tanto pode rondar o kitsch como o minimalista. Assim mesmo que a forma possa ser vista como kitsch, a obra de arte nunca o será, pois kitsch é superficial e de mau gosto. E por outro lado, até nas minhas obras lúdicas o riso não é exactamente igual ao que é provocado pelo kitsch pois é alegre, irónico e inteligente (passe a pretensão), mas não é óbvio nem vulgar.

A minha visão da vida, da cultura e da arte é unitária e espiritual, no sentido de que sinto que a multiplicidade é a expressão do uno, que tudo tem um sentido, que há uma ordem por detrás do caos e que a história humana, apesar de cíclica, revela uma evolução que a poderá levar a estados de consciência para além da mente raciocinante e talvez até à libertação da dualidade. Nesse sentido, o que tentarei clarificar em seguida deriva da minha experiência de que os Jardins são pontos de energia, podendo pois ser encarados em termos puramente artísticos ou sob uma perspectiva mais vasta que a outros poderá legitimamente parecer utópica ou mesmo ridícula. É evidente que, por vezes, exagerarei um pouco as ideias para deixar claro o conceito.

Qual poderia pois ser a sua função? Transformadora, terapêutica e de revelação da realidade. Eles visam, por um lado, e na sua maioria reavivar a criança em nós, a "criança divina", perene criador de mundos e, por outro lado, transformar de certo modo os homens ao oferecer o contacto directo, fugaz ou não, com o sagrado no seu sentido mais vasto, essa outra dimensão que toca o sublime ou o assustador, mas que escapa ao controle do homem. Os Jardins Mágicos, são uma "realidade proposta" ou uma "realidade preferida", a qual, em consonância com as descobertas da física atómica e com a sabedoria milenar do oriente, tem os mesmos direitos que a alucinação colectiva a que chamamos realidade. Têm por objectivo principal o reencantamento da arte e da vida em geral.

Nesse sentido, e no contexto de uma sociedade onde se perdeu a confiança nos governantes e sacerdotes, vejo os artistas e os poetas como aqueles que mantêm viva a chama sagrada, a evidência através do opaco. Creio que o artista pode agir por vezes como um mediador, um xamane que pelo seu contacto com os "mundos de cima e de baixo" consegue "encantar" o seu público. E seria até meu desejo que as pessoas deixassem certos "Jardins Mágicos" fazer milagres, que, pela intuição ou contemplação chegassem à iluminação. Sem chegar a tanto, sempre poderão ser sentidos como transmissores de verdades fora do tempo.

Como agem para cumprir a sua função? Os Jardins querem-se operativos e mágicos ou seja capazes de operar transformações quer no espectador quer no mundo. Uma das bases de um acto mágico é o estado de consciência de quem está a criar ou a praticar, essa ligação com a alma das coisas, com a alma do mundo, que a leva a que as palavras ou os outros meios utilizados não sejam mortos mas vivos. É um misto de grande concentração ou "alinhamento vertical" e de grande espontaneidade ou gozo no brincar, no jogar, no agir. Outra base da magia são os objectos, ritmos ou sonoridades utilizados. Neste contexto refiro que em muitos Jardins os objectos neles colocados são já por si sós carregados de uma energia que deles emana, e que houve mesmo pessoas que sentiram essas vibrações em termos de som. Noutros Jardins os símbolos apresentados são suficientemente fortes, como imagens arquetípicas do nosso chamado inconsciente colectivo, para libertar energias por reconhecimento interior.

Daí o conselho de que os Jardins possam ser vistos como sentimentos, ou partes dos nossos seres, que sejam "internalizados" e não mirados como histórias dos outros ou do passado. Daí o conselho de que se usem certos "ângulos mágicos de perspectiva" para olhar os Jardins, de forma a permitir que eles se mostrem animados, que revelem o seu espírito. A operatividade mágica resulta também da forma de combinar os elementos e dos temas tratados e, nesse sentido, os Jardins fazem a necessária reintegração dos dois elementos marginalizados da nossa sociedade: o sagrado e a "sombra", essa parte escura mas profunda de nós próprios.


Se o Butoh nos mostra o primitivo e o "belo terrível", que o Romantismo e o Expressionismo já tinham ousado contrapôr à beleza clássica que o ballet ilustrou, os Jardins Mágicos usam agora a dualidade e a oposição que são o modo de ensino e evolução neste planeta.

Em ambas as formas de expressão artística utilizo os extremos, tanto através do excesso como através da depuração, de forma a produzir esse momento de surpresa e curto-circuito mental que permite a irrupção da "outra dimensão". Nos Jardins Mágicos, a esse curto-circuito provocado por uma imagem forte, alia-se ainda muitas vezes um outro curto-circuito criado pelo texto (ou pelo título), o qual sob a aparência da mais implacável lógica, veicula um conteúdo de delirante ironia. Em suma: os Jardins utilizam uma técnica semelhante à do "video clip": o máximo de informação e impacto visual no mínimo de tempo e de meios.

Em que consistem os Jardins? em fragmentos holísticos do universo, podendo-se mesmo especular a possibilidade de que o dia em que todos os Jardins tenham sido realizados este Universo que conhecemos se venha subitamente a desvanecer. Acima de tudo creio seriamente que os Jardins são "convectores" onde a energia se concentra. Tal como uma bailarina sagrada, são como telefones interactivos através dos quais as pessoas podem enviar ou receber mensagens e energias. Em última análise, o que interessa não é o meio utilizado mas o que passa através.

São também um instrumento didáctico, uma nova maneira de ver coisas, as pessoas, o mundo. Como que um treino da visão para podermos ver as realidades de um novo paradigma - onde tudo está ligado e tem alma e onde nada é permanente - e também para distinguir os padrões uniformes que se manifestam em formas ou condutas díspares. Assim, há actividades que são "Jardins Mágicos", pessoas ou nuvens que são "Jardins Mágicos", formas de decoração ou cores que são "Jardins Mágicos", notícias do "mundo real" que crescentemente são "Jardins Mágicos".

O que não são Jardins Mágicos? pode-se pensar que o por vezes excessivo e colorido barroco de alguns deles é característica essencial, mas, como se disse acima, não o é, o objectivo é criar uma reacção forte usando uma ou outra técnica. Também a escala miniatura não é necessária: desde a instalação inicial, em que a casa do artista foi completamente transformada num Jardim Mágico com várias "pessoas" à escala humana, que o objectivo é não só criar "Jardins" à escala humana, como utilizar a paisagem campestre e urbana para recriações artísticas, que poderão ir até a pintar os oceanos.

Igualmente, nem o elemento narrativo verbal nem a variedade de elementos tridimensionais são imprescindíveis pois há "imagens que falam por si", figuras ou cenas que até poderiam fazer parte de um Jardim mais vasto mas onde a carga energética ou lúdica é tão concentrada que leva à sua apresentação individual.

Qual o seu objectivo final? Creio que estamos numa época onde o Espírito e a Matéria se aproximam a grande velocidade, o que levará à sua fusão. Creio que a Matéria poderá reconhecer no Espírito e que este se poderá revelar através da Matéria. Acredito que as "realidades virtuais" (bem como as técnicas de comunicação global), apesar de perigosas por poderem oferecer como definitivo um ersatz da vida espiritual ou afectiva, têm as potencialidades não só de unir numa só esfera a mente da humanidade e de permitir a criação de realidades alternativas, mas também as de demonstrar a relatividade e mesmo a falsidade da realidade material objectiva, o que, em conjunção com outros factores, poderá provocar uma salto qualitativo na história da humanidade, fazendo-a sair do "buraco negro" onde ainda se encontra.

Esse momento é precedido pela época actual, cujas características são o aceleramento do tempo (em termos de manipulação do espaço e da informação), a crescente sincronicidade dos eventos (não só exteriores, mas dos interiores com os exteriores) e a cada vez maior clarificação das questões, ou seja, a de que a raça, de resto cada vez mais telepática, distingue agora melhor o justo do injusto, o verdadeiro do falso e o belo do que o não é, (o que leva de resto aos actuais requintes de manipulação oculta das massas.

Outra característica desse aceleramento é a crescente interpenetração e fusão dos sistemas mais díspares que tinham sido divididos pela Ciência quando esta se separou da Filosofia e da Religião, e que, agora, leva não só à interdisciplinaridade e ao multiculturalismo mas sobretudo à minha ideia de que o que é importante é saber fazer bem alguma coisa para poder fazer também muitas outras coisas diferentes. Com efeito, são semelhantes na sua essência as leis que regem a manifestação quer no campo de pintura quer nos do Direito, da dansa, da Economia. dos afectos, da natação ou da meditação, sendo essencial nessa tarefa intuir os referidos padrões, muitas vezes invisíveis mas pôr fim óbvios, que ligam todas as imagens e actividades existentes. Nesta dinâmica global se inserem os Jardins Mágicos, que se propõem assim contribuir para ajudar à transição entre um mundo monolítico, materialista e massificado e um mundo de escolha consciente da realidade de cada um.

Para terminar esta apresentação dos Jardins Mágicos, resta referir o que significam eles para mim. São uma forma de meditação, de receber insights, de reconhecer partes de mim próprio, mais ou menos divinas, luminosas ou confusas. Uma forma de brincar e agir sobre o mundo "exterior". Uma forma de atingir o riso ou a participação mística. Uma forma de sair de mim e do tempo. Mágicos portanto...

Quem sou eu? O meu objectivo na vida seria não ter personalidade, não ter opiniões, não recordar o passado nem projectar o futuro. Aceitar e gozar a vida como ela se apresente, sem nada a defender nem nada para atacar. Até lá vejo-me como um agente de transformação cultural neste período de passagem para uma sociedade onde a cultura substituirá a política.


Este texto foi publicado no número 111 da revista Colóquio/Artes, da Fundação Gulbenkian, com fotos a ilustrar, sendo uma delas capa da revista.





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