Quando se fala em comunidade evocam-se imediatamente imagens fortes de natureza social e espiritual, desde a da família de sangue à do paraíso. O processo de querer criar uma comunidade é complexo. Há pessoas que já sabem porque querem, já decidiram a sua vida. Outras devem fazer uma análise das suas motivações, das suas dúvidas, das suas incertezas. Não é necessário ter as ideias todas arrumadas, mas é necessário sentir um impulso claro, ter uma visão clara do quê e do porquê.
Quando se embarca numa aventura comum deve-se ter claro que a nossa atitude afecta a vida dos outros. Sobretudo devemos ser transparentes no processo inicial. Transparentes a nível psíquico, moral, espiritual, afectivo, financeiro, sexual etc. Ou seja, sermos sempre verdadeiros com aquilo que vamos sentindo ao longo do processo e perguntando aos outros aquilo que sobre eles achamos importante. Sermos claros sobre aquilo que queremos dos outros, sobre as nossas expectativas e aversões.
Para mim, pessoalmente, o mais aliciante é o construir de uma espiritualidade comum. A espiritualidade nunca se pode impor ou tentar convencer. Cada um tem que a sentir à sua maneira e todas as maneiras são enriquecedoras e complementares. Construir e revelar uma nova espiritualidade, abrangente e integradora, parece-me um desafio fascinante. Uns estão mais ligados á água e querem viver perto do oceano. Para outros, a terra é o que conta. Uns conversam com a água, fluem com ela, vem-se nela ao espelho. Outras querem estar deitadas na terra, receber a sua energia, tocá-la, cavá-la, semeá-la. Uns são mais cerebrais e outras mais instintivas. Uns são mais activos e outras mais contemplativas. O objectivo é que cada excelência floresça. Que o génio de cada um contribua para harmonizar e dinamizar os outros. Viver em comunidade é por definição uma utopia. Pois numa comunidade projectamos necessariamente o nosso ideal de como devia ser a comunidade humana. Ao criar uma comunidade está-se a recriar a raça humana. Tudo o que queremos esconder ou subtrair a uma comunidade diminui a raça humana. Uma comunidade é um fractal entre o uno e o Uno, um holograma do todo, um holon, ou seja um grupo preciso na sua intenção e completo na sua essência. Ela não tem que ser uma Arca de Noé, mas é certamente um veículo colectivo, um contentor de intenções individuais, um sintetizador de humanidade. Uma comunidade é um corpo vivo, que respira e come junto. Um organismo com a sua coerência, os seus ciclos, o seu objectivo. A minha ideia é a de que, se se fala tanto em unidade e no uno, devíamos tentar chegar lá por uma forma prática e paciente. Pois uma coisa é falar dessa unidade e outra é ir criando a confiança que a vai revelando. E, como somos nós que damos sentido a tudo, é muito importante a prática de visualizarmos colectivamente o que queremos criar. Um ponto de partida é reconhecermos que não sabemos quem somos e o que somos, nem qual é a natureza da realidade. Partindo daí poderemos ir descobrindo muitas coisas, revelando, lembrando. Uma comunidade é um juntar forças, que só por si não chegariam lá. E, claro, temos coisas comuns: somos pessoas para quem o status e o dinheiro não são coisas que nos controlem. Outra coisa importante é que, se os casais precisam de discutir para reavivar a paixão, numa comunidade, onde não é o sexo que mantêm vivo o relacionamento geral, devemos descobrir que o erótico e o amor existem para além do sexo e são o fluído que dinamiza o grupo. Há quem diga que uma comunidade é fugir á vida. Mas, numa sociedade onde a vida se tornou isolamento e alienação, onde as famílias alargadas desapareceram e se quebrou o contacto das várias gerações, comunidade é refundar a família humana, reaprender o relacionamento justo. É o religar com o fluir da vida. Uma comunidade é uma forma de ver a vida. Assim como o homem com filhos vê a vida por esse óculo (os estudos deles, o que lhes vai deixar), assim um comunitário se preocupa pelo que dá aos outros, o que lhes ensina. Ele sabe que a comunidade cresce pelo que ele de si vai entregando. Por isso nos devemos perguntar muito claramente: qual é o meu contributo? Pode parecer pequeno, mas devemos declará-lo e partilhá-lo, até para que os outros o estimulem.
A vida é uma dansa onde cada um é uma orquestra. Qual é a nossa dansa? De que gostamos? Como e quando nos sentimos bem e melhor? E muitas outras perguntas nos devemos fazer: Quanto acreditamos na propriedade privada? Vemos relação entre ela e o casamento monogâmico? Quanta privacidade necessitamos? A questão da liderança ou do processo de tomada de decisão é talvez o mais importante em qualquer sociedade. Se a democracia actual nos parece vazia e injusta e desprezamos os partidos como meras máquinas de conquista do poder e distribuição de benesses, também não nos interessa em comunidade criar facções e muito menos ilhas.
Muito trabalho prévio deverá ser feito neste campo. De forma a estudar-se e decidir-se sobre novas formas de liderança colectiva, natural, temporária, descentralizada e horizontal. Nesse contexto, a prática doutras comunidades revelar-se-á preciosa, mas tudo terá que ser adaptado á maneira de ser portuguesa. Essencial é ter em conta o facto de agora não se visar a criação de uma comunidade fundada por líderes sociais ou espirituais poderosos, inspirados e carismáticos. Como atitude individual, creio que é fundamental o auto-empoderamento, pois só uma pessoa consciente da sua força e do seu papel pode ser responsável. A descoberta dessa atitude e a sua afirmação devem ser fundamentais no processo prévio da criação da comunidade. Só com uma visão clara, um compromisso assumido e uma prática comum estabelecida se pode minorar a tendência para a separação e o egoísmo e se pode estar certo que a comunidade seja sustentável, a todos os níveis. Por isso, parece necessário começar por pedir muito a cada um, para que a comunidade não se torne um clube de acomodados. Poder-se-ia assim declarar no início os defeitos de cada um e pô-los num caixote de lixo comum, uma incineradora que, a lume brando, através de práticas e teatros comuns, os vá revelando, objectivando, dissolvendo e exorcizando. Esse processo iria a par e passo com aquele de ir revelando, estimulando e empoderando as excelências de cada um. E, aos poucos, desse lume, se fará luz e amor em todos os comunitários…
Texto de 9 de Dezembro de 2011
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