"A Realidade da Ficção" foi o título de uma Exposição patente de 27 de Abril a 27 de Maio de 2017, na SNBA. Apresentamos um dos textos do catálogo, este por:
LUÍSA SOARES DE OLIVEIRA
Desde que conheço a obra de João Teixeira da Motta que me sinto impressionada pela sua capacidade de criar outros mundos, diferentes daquele que a nossa experiência quotidiana nos transmite. Recordo, há muitos anos, os seus Jardins Mágicos, cenários fantásticos realizados com objectos de muito diversa proveniência que apelavam de imediato à nossa capacidade de inventar, de ficcionar, de atribuir significado e, porque não dizê-lo, de ir buscar essa criança que todos guardamos algures dentro de nós e dar-lhe a possibilidade de brincar a um "faz-de-conta" que estava e está ainda hoje totalmente dentro do espírito do tempo. Mais tarde, uma série de retratos mostrava o artista assumindo diferentes personae, que foram colocados lado a lado com grandes nomes da fotografia contemporânea portuguesa numa exposição internacional em Madrid. Depois disto, João Teixeira da Motta, que tem seguido um percurso pontualmente alheado dos holofotes mediáticos, ressurgiu agora com nova série de objectos e alguma pinturas, onde continuam evidentes os processos de trabalho que assumiu como seus e que permanecem como base de toda a sua obra.
Neste contexto, a apropriação de objectos encontrados assume o papel principal. Conseguimos entender claramente que todas as obras aqui expostas provêm da capacidade de atribuir sentido a esse achado, ora transformando-o através da associação com outras peças, ora encontrando neles um vocação performativa que se manifesta nitidamente em dois filmes concebidos para esta exposição e projectados num espaço escurecido. O orgânico; por exemplo, é comum ouvir o artista dizer "aqui estão de boca aberta", "esta personagem tem dentes", "aqui temos um leitor apaixonado pelo conhecimento", entre outras frases que nos revelam o diálogo interior e íntimo que vai construindo, no isolamento do atelier, com o seu trabalho.
Nesta linha de pensamento, o artista incluiu nesta exposição um conjunto de figurinhas encontradas num antiquário, que sabe terem sido fabricadas por mãos femininas, e que provavelmente (mas nada é certo) seriam adereços usados na fase de pré-produção de uma peça teatral. As figuras, quase todas parecendo representar seres masculinos, vestidas com algo que poderia bem ser uma toga de senador romano, possuem uma qualidade inquietante que lhes é dada pelo estado de quase ruína em que se encontram. Mesmo assim, João Teixeira da Motta criou cenários para as apresentar que não estão longe dos antigos Jardins Mágicos que outrora construía.
Este processo de criação, no fundo, está tão perto da assemblage de raiz surrealista como do jogo infantil; e tão perto de um processo bem estabelecido pela historiografia da arte moderna durante a primeira metade do século XX como do gesto gratuito e ingénuo da arte que nunca se considerou erudita nem revolucionária. Dito de outra forma, encontro aqui tanto de Cruzeiro Seixas como das esculturas com objects trouvés de Picasso, tanto das caixas de José Cornell como dos mundos imaginários de um Facteur Cheval. É certo que existe na obra de Teixeira da Motta uma erudição e um propósito espiritual que habitualmente não encontramos na arte chamada ingénua. Mas o que interessa é entender que estamos perante uma expressão estética que procede de um impulso sincero e primordial, que de certa maneira interroga o modo como o corpo do artista produz aquilo que se chama arte. E, através disto, o modo como esse mesmo artista se insere no mundo.
Luísa Soares de Oliveira
Crítica de arte no jornal Público.
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