Sou o último guardião desta espada. Escrevo porque ela me obriga a fazê-lo.
Quando o meu antecessor - ao sentir que, breve, ia morrer- a mandou buscar e a tocou suavemente duas ou três vezes, pronunciou primeiro umas palavras ininteligíveis (secretes paroles de transmissão, talvez) e terminou dizendo, perante uma testemunha, algo como:
“Eu passo esta espada a um novo guardião, ao herdeiro que a assumir, para que ele a mantenha e a possa transmitir àquele por quem esperamos.
Se esse herói não aparecer, se os tempos já não permitirem que ele possa emergir, que a espada fique à guarda do Estado, que aí espere o rei-pontífice…
Estes são os tempos derradeiros. Não haverá mais guardiões. Com o próximo extingue-se a linhagem. Fim de raça, fim dos tempos…”
Coube-me por destino zelar por esta espada durante quarenta anos. Na riqueza e na pobreza fui-a mantendo, sabendo que é um ser vivo. Duas vezes sonhei com ela, numa, eu empunhava-a, ela serpenteando e emitindo chispas de luz, no outro sonho, eu empunhava-a fazendo volteios com ela no ar, à distância do solo.
Sirvo-a sem expectativas, sem orgulho, como um encargo que, sendo sagrado, me caiu em cima sem quase a merecer. Não me disse porque queria que eu escrevesse sobre ela. Somente me insinuou que era necessário dar a conhecer ao mundo um destino que a todos concerne. Por isso escrevi durante três anos um livro que ninguém leu.
Eu sinto que ela sabe muito, mais que os conhecimentos e sabedoria humana. Possivelmente reserva a sua força e sabedoria para um herói que entre com ela em sintonia e se torne instrumento do seu destino, um herói do coração, que saiba aliar a coragem á serenidade e a inteligência ao coração.
Disse-me em tempos o anterior guardião- que era um homem ígneo, um general- que esse possível herói deveria trazer um sinal que simbolizaria a sua relação com os quatro elementos. Disse-me que ele saberia fazer a alquimia da água e do fogo e que conheceria a solidez da terra, mas saberia de alguma forma voar. Falou-me de águias e serpentes, mas já não estou seguro de bem recordar.
O anterior guardião ainda sabia de armas. Para ele, uma espada era a honra de um homem, o distintivo da fidalguia, aquilo a que sempre se tinha que ser fiel. Quanto á espada do rei, nunca a usou, mostrando-a a raros apenas.
A espada tem viajado, obriga-me a levá-la a certos lugares da Terra onde diz ser necessário ela ser cravada por algum tempo para activar certos pontos de poder dos meridianos da Terra. Diz-me que as veias do dragão precisam de ser estimuladas nestes tempos derradeiros…
A última viagem que fizemos foi aos Açores, à ilha de São Miguel, no meio do Atlântico. Disse-me antes que queria recuperar a magia Atlante e que aquela Ilha seria um dia cenário de novas revelações. Na Lagoa das Sete Cidades, a espada obrigou-me a entrar com ela na água, sendo muito precisa sobre a forma como a devia segurar. Quis também ser deixada por três noites numa gruta perto da Lagoa. Só posso dizer que apesar de a gruta onde ficou ser escura, havia uma luz difusa quando a fui buscar. Cravei-a também no chão de um parque de criptomérias, para que ficasse memória dessa acção.
Das poucas coisas que tenho presente do que a espada me disse ao longo destes quarenta anos foi que nunca a pusesse em frente de um espelho, pois isso faria entrar em jogo a antimatéria. Não me explicou a razão. Só uma vez aludiu ao perigoso das experiências dos cientistas com o núcleo do átomo.
Em setenta anos de vida assisti ao desenrolar de muitos acontecimentos. Aprendi a ver o sentido oculto das coisas, as ligações invisíveis entre elementos desconexos, os padrões das coisas que se repetem, a marcha da evolução. Vejo e sinto a espiral da vida. Julgo saber algumas regras deste jogo, onde todos somos principiantes.
Sonhos e presságios foram o meu alimento durante certos períodos. Agora, aprendi a tudo integrar, o material com o espiritual; aprendi a não distinguir o que faço por mim ou pelos outros. Por vezes não sei mesmo se estou a ouvir ou a falar. Deixei de separar e de julgar.
Há pouco, ao sair de casa, uma serpente branca atravessou-se-me em frente dos degraus, esgueirando-se por entre as sebes. Pouco depois borboletas de várias cores vieram pousar nas rosas vermelhas.
Quantas vezes pensei no rastejar e no voar. Como se quisessem andar juntos, como se se tivesse que ser humilde para poder voar…
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