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João Motta

A Cosmovisão das Tartarugas 2/3

Atualizado: 4 de nov. de 2021


2 - Personagens Intervenientes



O Narrador

Devo dizer que o meu contacto com as tartarugas se tornou num segundo nascimento. Sem perder as minhas capacidades analíticas como antropólogo e etnólogo, essas capacidades foram como que transfiguradas pela luz que emanava da Deusa e pela grande sabedoria e serenidade que as tartarugas irradiam. Estas, para além das reconhecidas qualidades de inteligência, memória, perseverança e altruísmo familiar, possuem qualidades psíquicas cuja percepção não é acessível ao cientista comum, mas que se revelam ao estudioso que, com amor e compreensão, se relaciona com elas. Mas deixemos agora falar as várias personagens deste teatro cósmico pois no final encontrar-se-á uma síntese dos meus estudos sobre a civilização Quelónia.


A Deusa

Por amor criei o Universo, por amor baixei à Terra e tomei forma visível. Para que os seres deste plano me possam reconhecer e assim salvar-se.

Eu não sou uma tartaruga. A forma da tartaruga é na vossa dimensão a forma que mais se assemelha à minha forma perfeita. As tartarugas são minhas filhas, enviei-as a este plano para que os outros habitantes se possam recordar de mim, para que tenham um animal sagrado que os possa ajudar a chegar até junto de mim.

De um ovo meu, do ovo primordial que caiu sobre as águas informes, nasceu este planeta, todos os seus seres, a sua vegetação, os animais, os homens. Um outro ovo meu, resguardado nos recintos do templo dará origem a um novo ciclo, um novo universo e a uma nova encarnação da minha divindade.


A Sacerdotisa Isis

a) Antes de me tornar sacerdotisa, na idade de 28 anos, eu era pastora. Nada me distinguia das outras raparigas da mesma idade. Tinha amor pelas coisas pequenas, era naturalmente humilde, as pessoas falavam da minha simplicidade, mas eu não compreendia. O meu desejo era apagar-me, passar desapercebida. Ficava muito tempo embevecida pelos montes e, sem dar por isso, aprendi a linguagem dos pássaros. Um dia, estando eu perto de uma ribeira, apareceu-me uma luz, brilhante, amarela, na qual julguei distinguir uma grande tartaruga com asas. Escondi-me amedrontada, pois que me poderia ela querer? Mas a Deusa Tartaruga, pois dela se tratava, falou-me suavemente, em palavras que eu ouvia por dentro. Disse-me para me aquietar e que nada temesse pois que eu havia sido escolhida para a ajudar na sua obra na Terra. E a imagem desvaneceu-se. Fiquei muito confusa e pela primeira vez me encontrei dividida. É certo que eu já participava da Religião da Natureza. Que os meus dias se regiam pelos comandos do sol e da lua. Que todos os animais, árvores, flores e pedras eram para mim amigos, com as suas qualidades próprias.

Mas daí a servir uma Deusa em forma de tartaruga ia um grande passo. Eu sempre adorara todas as manifestações do divino, sem exclusão. Como poderia servir uma só Deusa? E porquê na forma de tartaruga, um animal que eu pouco conhecia e não me parecia especialmente espiritual?

Além disso, que seria esperado de mim? Que tomasse a forma de tartaruga? Mas a partir desse dia, algo que os humanos chamam telepatia começou a funcionar em mim de forma muito forte. Eu já comunicava sem palavras, mas era algo difuso, de que eu às vezes nem me dava conta, era por intuições e curtas mensagens, por imagens, às vezes por sonhos. Agora não, frases inteiras desenrolavam-se no interior do meu cérebro e, subtilmente, ia-me tornando noutra pessoa. A Deusa não voltara a aparecer, mas crescia em mim o desejo de a rever. As mensagens que eu recebia eram sobre a religião futura da humanidade e do planeta Terra como um todo.

No convento cerca da minha aldeia fui levada a encontrar uma monja, ela própria secretamente ligada à Natureza, que me aconselhou a procurar refúgio nocturno numa gruta no sopé da montanha. Foi aí que numa noite escura, depois de dias de jejum, me apareceu de novo a Deusa. Não falámos, nem se mexeu. Meramente me impregnou da sua imensidão, do seu amor, da sua luz. Quando a imagem desapareceu, o chão estava juncado das flores mais belas, que emanavam um delicado perfume que não era desta Terra.

A minha decisão estava tomada. A minha vocação clarificada. Serviria a Deusa, sem restrições. Deixar-me-ia ensinar. Seria dócil e receptiva e abriria caminho à sua manifestação neste planeta. Apesar de ser alvo do escárnio de algumas pessoas da aldeia, várias amigas se me juntaram e começámos a ser treinadas para sonhar em conjunto e a atravessar as dimensões.

Ao fim de meses, os três planos em que nos dividíamos fundiram-se, num estávamos no mundo, com as suas pessoas e as nossas tarefas e ofícios. Noutro andávamos pela Natureza e buscávamos as várias raças de tartarugas, com as quais nos deixávamos estar, aprendendo por osmose muitos dos seus lentos segredos e sabedorias. No outro mundo estávamos numa câmara especial, no reino interior e central das Tartarugas, nos recintos sagrados de um templo que nos parecia ser no fundo do mar. Quando esses três mundos se fundiram, como que acordámos. Pelos três havíamos andado como sonhadoras, divididas, incompletas. Agora tudo fazia sentido. Estávamos inteiras em tudo o que fazíamos. Reconhecíamos as ténues fronteiras entre os estados de consciência e as dimensões, mas o nosso ponto central de identidade já não se alterava. E, estranhamente, os risos e troças que anteriormente tanto nos incomodavam, eram-nos agora benvindos, como sinais de atenção na travessia e opacidade de certas dimensões.

As nossas mentes tinham-se deixado de questionar sobre a existência e a compatibilidade de universos paralelos. Da perspectiva donde nos movíamos a integração era natural e sempre existira. E, pouco a pouco, começámos a notar que para os habitantes, sobretudo mulheres, e para os homens que trabalhavam no campo da nossa região, esta fusão de planos se tornava insensivelmente aceite e compartilhada. Em termos específicos, era como se o complexo de templos submarinos da Deusa tivesse tomado forma visível e tocável, integrado nos nossos usos e costumes. Algumas monjas e prostitutas vieram juntar-se a nós. Eram só mulheres que ainda não tinham sido domesticadas pelos homens. Mas também alguns deles começavam a aparecer, a consultar o parecer da Deusa sobre questões como o limite das suas propriedades, a partilha das águas, ou as melhores épocas para semear as colheitas.

E é assim que hoje nos encontramos no seio da Humanidade, para, sem sectarismos, com ela compartirmos a sabedoria da Deusa e juntos construirmos a Religião do futuro.

Tocai e abrir-se-ão as portas dos templos! Abri-vos e vereis o esplendor dentro de vós! Parai a vossa azáfama e o Espaço e o Tempo alargar-se-ão sem limites!

b) A minha vida como sacerdotisa rege-se pelos ritmos da Deusa que sirvo. Aparentemente, a minha principal função é correr as cortinas que ocultam a Deusa aos olhares dos mortais, mas são inúmeros os rituais em que oficio, todos os actos em que acompanho a vida diária da Deusa. Poder-se-iam escrever livros sobre as propriedades da sua luz, sobre as qualidades curativas das cortinas que estão impregnadas da sua luz e sobre a alimentação da Deusa, que, sendo parca, é constituída pelas lágrimas do universo.


As Duas Sacerdotisas Ajudantes

Temos uma função intermediária. Recebemos as postulantes, as candidatas à iniciação que já atravessaram o arco. É nossa função escrutinar as suas qualidades de paciência, e perseverança, a sua devoção à Deusa e o seu grau de leveza intramolecular, pois o processo de iniciação, ainda que secreto, consta não só de elementos psíquicos mas de outros, físicos, comprováveis cientificamente a nível do corpo das tartarugas. Para isso temos estes instrumentos esféricos, de cristal que detectam sem erro se a tartaruga pode fisicamente ser admitida às câmaras de iniciação. Fazê-mo-lo até para sua protecção pois, caso contrário, grandes sofrimentos ou até a desencarnação para planos desconhecidos ou difíceis poderiam ocorrer. Neste período intermédio entre o Arco e a Câmara em que podem medear dezenas de anos, as candidatas sujeitam-se a um regime de calendário e de alimentação o mais são possível. Estas são de resto as duas áreas em que os humanos mais poderiam aprender com as tartarugas.

Assim, um dos piores desvios que a raça humana institucionalizou no planeta é a contagem do tempo. Quando os sacerdotes da Babilónia, inspirados pelos demónios, passaram a usar as medidas utilizadas para medir o Espaço (que é uma coordenada puramente física), que são o 3 e o 4 (e dão o 12, o 24 e o 60) para tentar ordenar e controlar o Tempo que é um vector psíquico, destruiram a relação do homem (e progressivamente do planeta) com o cosmos. O homem perdeu assim a memória das suas origens e das outras dimensões, ficando prisioneiro deste plano físico o qual, segundo as tartarugas, chegou o momento de transcender.

O tempo é a medida da perfeição do pensamento constante de Deus. Para elas, tornou-se pois necessário resgatar o tempo. O tempo cíclico que foi revelado e ainda se pode comprovar nos ciclos da lua, do mar, das mulheres. Do actual tempo falso tem decorrido vários malefícios, desde o excesso de população humana a várias doenças. Para as tartarugas o tempo é bastante imaterial, é mais uma questão de maior ou menor sintonização com os ciclos e com a luz. Nas nossas câmaras intermédias fazemos, por exemplo, recuperação de tartarugas que, depois de períodos prolongados na escuridão do fundo do mar sofrem de carências lumínicas.

A outra questão que tem levado a grandes desequilíbrios e tensões neste planeta é a alimentação. O homem ao comer animais impede-os de ultimarem a sua evolução e atingirem pela morte o seu paraíso próprio. Mas caso persista em comê-los, o homem devia sempre pedir a aceitação e o perdão dos seres que, ao caçar, comer ou cozinhar está a imolar. As almas desses seres, sobretudo os vegetais, tendem a aceitar esse acto, devendo contudo ter-se consciência da forma como se cortam os corpos dos animais e dos vegetais e como se fazem arder os seus corpos físicos pois o conceito físico de morte dos humanos ignora os corpos mais subtis, que continuam ligados ao físico por algum tempo depois. Também o fogo devia ser invocado antes de ateado. Todas estas regras acabariam por produzir uma melhor digestão e harmonização. Para as tartarugas, o seu sistema muito mais lento de assimilação está ligado ao sonho, à criação de imagens, à imaginação, pelo que, a mais humilde refeição, pode produzir o êxtase mais absoluto. São técnicas milenares de que o homem poderia beneficiar e que a nós sacerdotisas nos têm dado longevidade e refinamento das nossas capacidades de percepção psíquica.


A Eremita

Serei das tartarugas mais idosas deste planeta. Nunca tive nome nem isso me preocupou. Quando buscava a minha identidade, ter um nome seria um empecilho, depois tornou-se supérfluo. É contudo verdade que uso sons para me ajudarem a aperfeiçoar o alinhamento com certos estados de união com o Todo, e que uso certos sons para - como veículos que cavalgo - me comunicar automaticamente com a Deusa.

Ao falar para a humanidade, estou consciente dos risos de má interpretação que as minhas palavras poderão ter, dado que os humanos estão muito agarrados a conceitos rígidos, a palavras fixas há séculos e a formas já conhecidas e facilmente reconhecíveis.

No nosso mundo pelo contrário, tudo é fluido, tudo se coloca pela intenção, as formas são momentâneas e dissolvem-se depois do fim atingido. A nossa regra poderia ser "a máxima criatividade dentro da maior imobilidade". Só a imobilidade permite a concentração, sobretudo nos estados iniciais do caminho, nos quais o ser se identifica com a míriade de fenómenos que lhe vão aparecendo.

Para mim, mover-me ou estar imóvel já me é igual. O movimento deixou de ser distracção. O mais difícil para mim seria descrever para os humanos a necessidade de abandono das dicotomias.

Não deixa de ser útil falar em Tempo e Espaço, que existem nesta dimensão. É mais a perniciosa divisão entre mundo interior e exterior que é absurda e não permite ao homem acalmar a sua vida. Eu transformei-me em luz, em cristal totalmente transparente, ao fim de 600 anos de meditação. Não desejo que a minha carapaça se transforme em asas porque os universos voam dentro de mim. A realidade é um holograma e estes grãos de areia do nosso chão colorido são mágicos. Para mim é tão interessante explorar um grão como o universo. Tudo depende da intenção, tudo depende da perspectiva donde me coloco.

Na imobilidade está o segredo. A alma das coisas revela-nos melhor o seu segredo quando não se sente ameaçada ou agredida pelos nossos movimentos ou desejos. Quanto menos, mais. Quanto menos buscamos, mais recebemos. Quanto mais emanamos, mais nos enchemos. Quanto mais nos desidentificamos de nós, mais nos identificamos com o Todo.

Para nós, a Deusa é-nos consubstancial. Nós somos as filhas da Deusa, a sua forma visível na vida diária dos homens, o recordatório das suas qualidades. Quando vejo passar diante de mim as candidatas à iniciação no seu longo e multissecular cortejo, não perco a minha transparência nem me coloro com as suas aspirações e temores. Faço-lhes como que uma lavagem prévia em relação à sua passagem pelo Arco triunfal da iniciação e à sua eventual entrada nas câmaras secretas da Iniciação Maior.

A minha transparência é física e real, mas é também simbólica de que - como tudo me atravessa sem deixar mácula nem resquício - eu já redimi em mim a matéria subtil de um eu que deseja. Posso assim limpar essas tartarugas de algumas identificações que necessariamente ainda têm com uma forma que se arrasta ou que nada. Aqui, nesta passadeira de mármore branco, todas caminham como se num vácuo físico, iluminado pelas estações do conseguido. Elas sabem que caminham, conhecem o objectivo, mas são como que aliviadas dos seus pesos e passados emocionais, nomeadamente das visões traumáticas daquelas que assistiram e escaparam à caça humana às tartarugas. Para elas, para todos, eu sou coragem, sou exemplo, sou luz que toma forma na matéria.


A Chefa do Protocolo

Fui diplomata durante duzentos anos. Servi várias gerações de Rajás de Udaipur, na Índia. Fui fútil e superficial. Ataviada em jóias e adereços abri os cortejos de homenagem na acessão ao trono e introduzi os dignitários que se vinham despedir dos defuntos. Agora sirvo a Deusa. As jóias e pedrarias que acumulei, aquelas com que os Rajás cravejavam anualmente a minha carapaça na esperança de poderem atingir a minha longevidade, servem agora para reflectir o brilho das suas inumeráveis facetas.

Não sou ainda admitida nas Câmaras da iniciação, mas a Deusa conhece o meu desejo. Dizem-me as sacerdotisas que sou por enquanto indispensável para introduzir os enviados das raças aliadas ou feudatárias, para planear os cortejos que visitam os lugares sagrados, para imaginar as iguarias servidas nos banquetes oficiais. Por amor da Deusa a tudo acedo, ainda que tenha que ficar mais trezentos anos neste ministério tão trabalhoso. Apesar de esquecida, ensino boas maneiras às tartarugas do campo e aquelas que há pouco saíram do mar.

Componho canções de louvor à Deusa, pinto-lhe os aposentos de cores misteriosas e impossíveis, fui mestra de dansa e bailado. Tudo na secreta esperança de que a Deusa me reconheça como artista, pois eu sei que essa é a raça que Ela prefere, aquela que mais se lhe assemelha. Disse-me um dia a Deusa que há planetas e dimensões somente habitados por artistas. São os únicos onde Ela passa desapercebida. Onde a sua inspiração e conselhos são ouvidos. Os únicos onde pode partilhar os mistérios da forma, da cor e da luz. Disse-me a Deusa que no coração de cada artista, mesmo naqueles que se dizem ateus, Ela tem a sua morada firmemente estabelecida. Que os artistas da Terra são os restos caídos, os restos esquecidos e não redimidos das noites iniciais da Criação, os últimos espectadores da emergência das formas, das matrizes e dos arquétipos, os colaboradores da luz e da sombra.


As Iniciandas

Temos confiança. Há muito que nos preparamos para este caminho. Correm estranhos rumores sobre o que se passa na Câmara de iniciação. Sabemos que o preço de aquisição das asas é a perda do ego. Assusta-nos a possibilidade de, nesse momento podermos encarnar num corpo humano ou de nos dissolvermos eternamente no todo, mas temos confiança na Deusa e nas sacerdotisas. Sentimos a nostalgia dos grandes espaços cósmicos que nos chamam. Antes de nós, outras tartarugas nos precederam, outras se seguirão. Ao tomarmos asas, somos um elo na cadeia da evolução, uma garantia de avanço para este planeta, fazemo-lo em nome e benefício de todos os habitantes deste plano.

Cântico:

Longo é o caminho! Belas são as margens! Nosso fim são as asas! Por elas lutamos!


As Tartarugas Visitantes do Santuário

Apesar das tartarugas serem agarradas às suas tradições e costumes e à sua dignidade, não é por obrigação que vimos visitar o santuário. Mas sim porque aqui nos revivificamos.

Os oceanos tornaram-se poluídos em demasia e têm agora a função de transmutar o karma da humanidade e do planeta, pelo que se encontram sujos com as piores maldades físicas e psíquicas dos humanos, de que os derrames de petróleo são somente a ponta visível do iceberg.

Nós somos muito antigas, estamos cá há 200 milhões de anos, somos contemporâneas dos dinossauros, somos um exemplo da selecção evolutiva das espécies. Não é tão grande a diferença entre nós e os homens. Só que nós dedicamo-nos sobretudo à meditação. Os mundos não são só físicos e materiais pelos quais o homem tem grande apetência porque perdeu o contacto com os outros. Foi um desvio. Nós controlamos e utilizamos a mente como um instrumento e não como um amo. Os pensamentos também nos ocorrem, mas não lhes ligamos tanta importância. Tornar-nos-íamos infelizes se os seguíssemos. Os mundos em que vivemos são criados pela concentração da nossa imaginação e vontade.

Assim, o mistério das asas. Nós cremos que são asas físicas, que nos poderão levar de volta a Vénus. Não tem o homem ainda memória dos dragões, dessas serpentes que se tornaram aladas? Se as serpentes podiam em épocas recuadas ter asas, porque não poderíamos nós, em consequência desse salto qualitativo na evolução que são as iniciações, tomar também asas?

O desejo de voar é universal, o desejo de voltar e a nostalgia de um paraíso são universais. Não seria justa a Divindade que não permitisse aos mortais a realização desse direito e aspiração. Para nós, a felicidade é a nossa natureza profunda, à sua busca nos dedicamos. As asas, físicas ou subtis, são o coroamento desse esforço e dedicação.

Ao contrário do que os homens poderão pensar, entre nós há muitos temperamentos e feitios, temos tartarugas muito teimosas, preguiçosas ou distraídas, temos até feitios que os homens não conhecem devido à sua cada vez maior uniformização mental e social. As vidas humanas estão cheias de actividade mas vazias de sentido.

A humanidade e os seus sonâmbulicos chefes nem sabem que são peões em guerras cósmicas muito mais vastas, como a dos Senhores do Tempo e do Espaço. Os humanos estão a ser bombardeados com falta de tempo, que se manifesta por uma multiplicação de pólos de interesse e atracção e por um excesso de informação.

Somos acusadas de ser de digestão lenta. Mas devagar se vai ao longe. Nós fazemos a digestão mental e psíquica daquilo que absorvemos, não só das ideias e conhecimentos mas dos alimentos que ingerimos. Os homens não assimilam aquilo que leem, veem ou conversam. Passam logo para outra. São seres rápidos mas superficiais. Inconstantes e infiéis aos seus princípios e aos seus associados. Incapazes de vínculos duradouros e afectos profundos. Todos, mas todos os outros animais comunicam entre si, só o homem perdeu o contacto.

O homem devia estar muito agradecido às tartarugas. Fomos nós que trouxemos do fundo do mar o barro, o lodo e a areia com que se fez a Terra.


As Pitonisas

A Sibila Cassandra

Sou uma mulher selvagem. De noite corro pelos campos e pelos bosques, de cabelos desgrenhados, dando gritos que assustam os animais e os homens. Não temo os elementos e a profecia ocorre em mim espontâneamente. Muitas vezes encontro um animal e predigo-lhe a iminência da sua morte ou encontro um homem a quem desvendo os segredos monstruosos da sua alcova. Nunca estudei e se o fizesse deixaria de ser eu. Sinto as alegrias e os tormentos da Mãe Terra.

Ultimamente, ando inquieta. Não sei onde parar, nem onde me esconder. Não reconheço os lugares deste mundo dos homens. Tudo muda, tudo me cheira mal e me aparece opaco. Vivo acossada pelos elementos, que ameaçam rebelar-se e pelos animais, que já não querem obedecer-me. Quando entrei ao serviço deste complexo de templos eu recebia directamente do supra-consciente da Deusa as respostas que deviam ser dadas aos homens. Agora, múltiplas interferências confundem a minha visão interior, a minha sintonia tornou-se episódica e já raramente sou possuída pelo furor divino. Dizem que só faço predições funestas, que me tornei amarga e pessimista, mas eu sinto e digo o que a Mãe Terra me sussurra. Pelos pés me entram as suas queixas, as suas ameaças de vulcões e terramotos. Nas folhas ressequidas dos meus braços sinto os incêndios que a abrasam. Não respiro livremente; ofegante, falta-me ar, clamo pelo fim de tanta sujidade e destruição!


A Pitonisa Eritea

Nasci para ponte. Entre os homens e a Deusa. Entre o mundo das aparências e das ilusões e o mundo das matrizes de luz. Sou uma mulher que sabe falar. Uma mulher que tem que saber as palavras exactas que tocarão os homens. As incoerentes mensagens que recebo da Sibila Cassandra traduzo em palavras de poder, em obras de arte e poesia a que os homens são sensíveis.

Não sou mulher de conflitos, virgem nasci, virgem morrerei. Servir a Deusa é a minha razão de ser: ajudar os homens a minha forma de evoluir.

Nestes oráculos dos fins dos tempos, a que empresto a voz, sinto-me por vezes amordaçada pela pergunta que me é feita. Porque são rasteiras, fúteis, ou interesseiras as perguntas dos homens? Por vezes enfadonhas na sua monotonia: Deverei comprar o terreno ou a mercadoria? Dever-me-ei casar com esta ou com aquela? E os estadistas fazem-me perguntas semelhantes: Deveremos deixar cair a Coreia e a Tailândia ainda mais ou deveremos comprá-las já? Se ganharmos o Golfo, ganharemos também a Península? Até quando poderemos continuar a poluir sem ser julgados por crimes contra a Humanidade?

O nosso papel é difícil. Ao continuar o contacto com os humanos submetemo-nos às radiações nefastas que as suas auras emanam. Pelas perguntas que nos fazem sentimos que os homens estão desorientados, aguilhoados por desejos contraditórios, divididos entre um mundo novo que sentem estar a nascer e o apego a estruturas caducas que já não os servem mas os aprisionam.

Poucos são os que vêm em busca de sabedoria. Poucos sabem ver a Deusa através da forma da tartaruga. Eu que sou equilíbrio, que busco o caminho do Meio, às vezes dou razão a Cassandra e não vejo forma de os homens acordarem antes do fim deste ciclo. E não lhes posso dizer que então reencarnarão como animais, como espinhos, como pedras dos precipícios, cada um segundo as suas aptidões...


A Sereia

Por vezes sinto que a minha função, porventura a mais misteriosa deste recinto, talvez seja a mais bela. Este ovo que eu guardo, este ovo que eu alimento e protejo é o futuro. Quem sabe se a Deusa morrerá, se a Terra passará. Mas neste ovo está a promessa da redenção, o gérmen de um novo ciclo, as coordenadas possíveis do próximo Universo. Sob a minha mão incubo as galáxias, o orvalho que se transformará em oceanos, as areias que tomarão cor e forma.

O ovo é transparente e parece vazio, pois só do vazio pode nascer o todo. É nesse vazio que eu como sereia nado. Triste foi a minha condição, partilhada entre o mundo humano e o prazer das águas. Mas as tartarugas e a sua Deusa um dia descobriram-me e desvelaram-me o mistério da minha singularidade. Posso compreender as tartarugas do mar e os humanos da terra. Como um andrógino participo de duas naturezas. As profecias apontavam para o meu aparecimento no final dos tempos. Nos meus olhos azuis, o céu, na minha cauda, a dança das águas profundas. Que ama melhor poderia escolher a Deusa para a sua Sucessora?


A Guardiã do Antepassado Mítico

Qual esfinge, presido aos mistérios de um Deus que desconheço. Tolerada pela Deusa, sou vestal de alguém que ninguém sabe ao certo se existiu. Oanes, esse ser primordial, o primeiro a sair das águas, meio humano - meio tartaruga. Emergido em Ur, antes que a cultura nascesse. Dizem as que como eu crêem em Oanes, que nesta capela secundária se venera, que a criação não se deu abruptamente e que um antepassado comum nos precedeu. Se há tartarugas dragão, se as carapaças se podem volver asas, se há sereias, macacos e anões porque não Oanes, esse traço de união com os humanos, esse ponto possível de comunicação, essa explicação para semelhanças e afinidades, essa legitimação da raça humana?


As Mulheres da Congregação

Estamos convencidas da nossa vitória. Sentimos que uma nova época vai nascer e preparamo-nos para esse momento. Uma época de paz e equilíbrio. Nos últimos anos sentimos uma evolução na consciência da humanidade. Uma maior aceitação das causas sociais pelas massas. Uma maior tomada de consciência das mudanças espirituais iminentes por parte daqueles que estão a despertar do sonho colectivo.

Militamos por uma sociedade mais justa e fraterna e, com a nossa paciência e perseverança, oferecemo-nos para missionárias da religião do futuro, da religião da Deusa, junto dos reinos humanos. Aquilo a que temos assistido aqui, a instrução que temos recebido confirmam-nos na nossa determinação. Não tememos o escárnio dos bem pensantes filósofos relativistas da decadência, dos acólitos do simulacro. Vemos através das barreiras opacas da época e dos seus espelhos. Vemos através dos artifícios dos manipuladores e das armadilhas do reconhecimento social. Move-nos o fluir eterno da Deusa.


O Monge

Procuro estar o mais tempo possível junto da Deusa. Ela é como o mel ou como uma droga: só nos sentimos bem e aquietados quando estamos com Ela. Sigo o caminho da devoção: trago-lhe flores todos os dias, mudo-lhe as velas, faço-lhe 999 prostrações por dia. Muitas vezes deixa de haver diferença entre amador e Amada. Eu sou a Deusa e Ela está em mim. É um gozo indizível. Como se o tempo deixasse de correr e em nós se concentrasse todo o espaço. Quando caio em mim é a noite escura da alma: uma recordação deliciosa, uma nostalgia dilacerante, uma promessa e esperança radiosas. Servi outras religiões, mas só esta finalmente me satisfez.

A Deusa Tartaruga é perfeita na sua compaixão pelos mortais, toma a forma que corresponde aos nossos desejos. Na encarnação que tomou para este ciclo apareceu como uma tartaruga para nos lembrar da nossa natureza de viandantes, com a casa às costas, eternamente com a abóboda celeste por cima e a terra plana por baixo.

O amor está para além da forma. Adoro a Deusa como ela se digna mostrar-se. Mesmo que fosse muito feia, na mesma seria objecto da minha devoção. Na minha Ordem de frades sempre sentimos grande comunhão com a Natureza, tudo me preparava para dar este passo.


Os Homens Consulentes

Ouvimos dizer que elas conhecem a verdade, que sabem o futuro, e o segredo das coisas e por isso viemos consultá-las. Nós temos opiniões certas e definidas e sabemos o que queremos. Mas não podemos controlar tudo, há coisas que nos escapam e são essas que queremos saber.

Além disso, têm aparecido estranhos insectos nas colheitas, que resistem aos pesticidas, animais que nascem com duas cabeças, prolongadas secas e temporais e tudo isso nos traz inquietos. Somos pessoas para quem a família e o Estado contam. Prontos a defender a nossa bandeira, o nosso Estado, o nosso hino nacional. E sentimo-nos ultrapassados pelas transnacionais que nos ditam directamente a sua lei.

Por tudo isso sentimos a necessidade de consultar as pitonisas. Achamos que elas ainda estão mais em contacto com a Natureza do tempo dos nossos avós, que elas sabem esconjurar o futuro e que têm maior recuo em relação às dissensões que nos opõem. Mas não ousamos vir abertamente consultá-las. Uma servente do templo traz-nos à noite do outro lado e aqui esperamos até de madrugada quando ocorre a consulta.



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